Whataboutism(s)

Quando, nas redes sociais - sobretudo, no Facebook -  dou conta da opinião de algumas pessoas (da maior parte delas, até) acerca da forma como devemos perceber o racismo, percebo que quase todas são profundamente unilaterais. Explico: quase todas tendem a forçar um determinado ponto de vista (que pode ou não ser o delas, mas que é, segundo todas as outras, o único verdadeiro).

Quem não partilha aquele olhar radical, de cisão, de posicionamento extremado acerca da forma como toda e qualquer atitude racista deve ser lida passa para o lado mau da força: é, obviamente, racista.

As minhas posições políticas (para os verdadeiros humanistas, não há posições ideológicas, há posições políticas, acho) recaem, por uma questão que não explico e me é essencial, numa forma terna (revolucionária, mas terna) de perceber as pessoas na vida em que estão, em que conseguem ser pessoas, mas em que estão depostas. Com "depostas", quero dizer, colocadas, situadas, enterradas vivas ou soltas, postas à sua sorte – chame-se-lhe o que se quiser – mas em que “estão”. Em que "estão e são", à maneira anglo-saxónica do verbo.

No entanto (uma forma de dizer “mas” sem o dizer abertamente, é certo), não acho que se possam tomar decisões sérias ou opinar de forma íntegra baseando-nos nós em posições que abandonam a viva vivida em todas as suas dimensões, e que, por definição, não se resumem à unidade. Se o todo é a soma de todas as partes, não faz sentido olhar a luta contra o racismo pondo de parte, ostracizando, percebendo que há não só um racismo, que há racismos, contabilizando as opiniões de quem não se pronuncia perante comportamentos racistas e apontado o dedo a todos aqueles e aquelas que, segundo a óptica de quem grita, fazem silêncio. Quem grita, raramente ouve. Wittgenstein, que levou uma vida inteira a lutar contra quem não aceitava a sua orientação sexual escondendo-a de posições que poderiam confundi-la com a sua obra, escreveu qualquer coisa como “sobre tudo aquilo que não pode ser dito, deve ser feito silêncio”. Lá saberá porque o fez. Imagino-o até, neste contexto, como aqueles piratas que víamos nos filmes, que saltavam do navio antes de se afundar e guardavam o tesouro entre o peito até à morte, o tesouro que tinham levado à margem, a custo, e que era, naquele momento, o resumo da sua própria vida, mesmo que a morte os levasse no segundo seguinte. A sua obra-prima. Todos temos uma, que sabemos - ou não - guardar.

Nada mais que isto: o silêncio não é, ao contrário do que os revolucionários e revolucionárias de repentes (alguns de ocasião, outros não) querem fazer crer, impor, manter sob a égide de verdade absoluta, aquilo que, por decreto, entenderão como uma não-tomada de posição. Calar, às vezes, pode ser uma forma de dizer as coisas de uma outra forma, mais contida, mais íntima, de as protelar para as poder fazer soar com eco, de as dizer com mais certeza nas horas, nos dias, nas alturas em que mais serão precisas. De as burilar.

É moda – tornou-se, aos poucos, moda - afastar a mínima possibilidade de se falar em “whataboutism” sem se ser fascista. Mas ninguém fala – ou porque não interessa, ou porque há, em Portugal, uma espécie de status quo ainda mantido inabalado por quem dele se pode aproveitar – do conceito de interseccionalidade, que nada mais é que levar as questões das minorias (das pessoas com deficiência, dos sem-abrigo, das pessoas que não “cultivam” o corpo como se estivessem a tratar do tamagotchi, do bonsai ou a fingir que não estão a namoriscar o/a personal trainer, das pessoas que confundem a relva dos campos com a depilação) às bocas do mundo e tratá-las ao mesmo tempo, da mesma forma, com a mesma intensidade e, depois sim, agora sim, então sim, com toda a radicalidade que a paixão impõe às grandes causas.

“Whataboutism” não é uma mera refutação de um argumento comparando-o com o outro, bom ou mau, melhor ou pior que seja. É pôr pessoas a pensar em pessoas, formar parâmetros, é tirá-las da moldura da abstração, porque nem todos somos obras de arte dignas de ser emolduradas, postas a pairar no céu dos conceitos. 

Há racismo. Há. E tem que haver uma posição firme e determinada e precisa, quase cirúrgica a quem defende, promove e consente atitudes racistas. "Mas" – e é curioso - não há o mesmo nível de entrega, de intensidade, de paixão, repito - de entrega, de verdadeiro amor pela luta pelos direitos humanos de pessoas que são mortas (algumas de uma vez, outras várias vezes por dia), todos os dias, todas as horas e intermináveis segundo desta ainda vida, de uma forma – essa sim – de gritos que ninguém ouve. De pessoas que vivem, crescem e morrem (umas vezes aos poucos, outras definitivamente) em instituições. Como diria Borges, de pessoas que, como águias, procuram "ainda no azul a sepultura/ que a sua sombra escura/ já desenhou no chão". De pessoas que nunca verão o mar. De pessoas que serão subjugadas, violentadas, empurradas para a morte por pessoas que as maltratam, por pessoas que as forçam a abrir as pernas, todas as noites, antes de dormir.

Se não defender o "whataboutism" nem a interseccionalidade da luta pelos direitos das minorias é ser fascista, então, voltarei à escola. Não há problema nenhum em voltar à escola. Sou mortal, afinal. O importante: tentemos fazer das causas lutas, antes de promovermos guerras civis. O urgente: unir. Isso sim, o urgente.

(imagem: ©Sandra Ramos Casasampera, "RE-habitar", 2020)

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