Catarina


Não entendo. Não entendo e, mesmo que conseguisse entender uma parte do problema, teria que ligá-lo à probabilidade de ter começado antes da pandemia, numa altura em que a vida na Terra ainda existia: como é possível adoptar uma postura meio neo-hippie, ensimesmada, enfiada, como a cerveja à pressão é enfiada nos barris, entre trejeitos zen e uma posição de intervenção social que rondará a velocidade média entre o caracol e a lesma, quando pessoas, enfim, morrem aos nossos pés por não comerem ou por não terem acessos aos cuidados mais básicos de saúde?

Espera-nos um inverno, no mínimo, frio, sobretudo hoje, agora, que as startups fecharam as portas que nunca abriram e há vidas extra para os créditos desta vida, até ser game over. Espera-nos a rua, o desemprego, os outros na rua, familiares que morrem, namoros estragados por uma merda qualquer (Setembro, dizem, é pródigo na matéria), um Outono a convidar à praia quando a altura é para pagar a prestação da casa cujo banco já espreita e, por fim, o Inverno do nosso descontentamento, entre a revisão do carro, os acertos da conta da luz e a árvore de natal que tem que ser desligada porque, enfim, há contas para pagar.

Se não me falha a memória, as posturas neo-hippie dos abraçadores de árvores cá da terra existem porque as contas estão pagas ou, na melhor das hipóteses, o optimismo da malta nova rica, que gosta de dizer aos outros que é “remediada” e que veste Prada é, até ver, superior à lógica bolsista Há um porreiro de um economista em cada flower child, mas é um economista desafogado. Esses, obviamente, não contam para o totobola porque já lhes saiu o euromilhões.

A malta “B”, menos favorecida, a malta parva no limbo da geração X de Coupland, a quem a sorte não assiste nem que os astros apontem todos à fortuna, são as pessoas (ainda há pessoas, apesar dos vírus), e essas não beneficiam com as atitudes da malta “A”, as pessoas que levitam graciosamente entre casas de chá, sushi vegan, feng shui, pão biológico e massagens holísticas, que descobriu que há um “Portugal interior”, que achavam vir pintado com aqueles filtros do Instagram nos programas dos domingos à tarde mas que, afinal, até existe, vá lá, apesar dos insectos. Que acham que é melhor dar a ganhar aos jovens empreendedores sociais que perderam “tudo” (tudo?) com a pandemia porque investiram o que tinham a) no bilhete para a Web Summit ou b) numa barraca com uma piscina infinita e meia dúzia de galinhas a compor o ramalhete, sítio a que chamam – tcharan! - de “turismo rural”. 

Brutal, esta ideia de que os novos abraçadores de árvores são todos e todas "plastic-free", amigos e amigas dos golfinhos. Se acham que Catarina Eufémia ceifava descalça, estarão enganados. Ali era para trabalhar, mesmo que com menos dois escudos por jorna.

Pois é, pessoal, venha de lá esse Inverno, venham de lá esses ossos. Venham de lá essas teleconsultas, venha de lá essa saúde vitaminada pelo sol. A malta “B” dormirá na rua ou, na melhor das hipóteses, naqueles hostel temporários very low-tech que costumam fazer no Martim Moniz, onde servem uma refeição, aparece o Marcelo e dizem, depois do circo, ao pobrezinho qualquer coisa parecida com “faz-te à vida”, “vai trabalhar” ou, em surdina para a coisa não correr pior, “vai para a tua terra”. Já a malta “A”, essa, ficará em casa, naquilo a que chamam a sua terra, a ver o Netflix e as notícias, que – assim espero – não lhes tragam outras notícias, e a notícia do medo de sair da porta para fora.

Eça estava coberto de razão. Consigo ouvi-lo às gargalhadas, lá em cima, fosse o estado da nação motivo para isso. Salvem-se as crianças que, como o próprio dizia, “só começamos a ser idiotas quando chegamos à idade da razão”.

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