Levantar do chão

Tirei a carta numa altura em que estava quase sempre a chover. Na condução, tinha dois instrutores, o Jorge e o Paulo. Ambos eram, igualmente, instrutores de condução Todo-o-Terreno no Gerês, habituadíssimos a um estilo de condução em que o aprecimento de curvas e contracurvas tinha que ser uma espécie de arte sobrenatural.

Ficavam ambos irritados com a minha forma de travar o carro, que ficava, na maior parte das vezes, a três centímetros do obstáculo a evitar e - coisa que os irritava ainda mais - podia ser humano e estar a atravessar a passadeira.

Uma tarde, próxima já da altura do exame, o Jorge, um pouco mais atento aos pormenores que o Paulo, disse-me que tinha dormido mal, que tinha dormido mal por ter demorado tantas tardes e manhãs para chegar à conclusão acerca da razão pela qual eu travava em cima dos obstáculos, provocando a morte por ataque cardíaco a cinquenta e sete por cento dos peões que se cruzavam com o nosso Micra asssasssino. A razão era simples: eu olhava para o chão à frente do carro, e não para a frente, para os pelo menos cem metros que o meu olhar deveria cobrir quando conduzia. E tinha percebido porquê, porque eu andava de canadianas e como, andando, andava quase sempre com os olhos postos na minha frente imediata, seria normal que o fizesse também num carro.

Não voltei a pensar nisto durante anos. O meu esforço por olhar em frente (em vez de olhar para a frente imediata da minha frente, como sempre fiz) nunca se concretizou. Ainda não matei ninguém. Não aconteceu. Tenho tido sorte, admito. Mas é de pensar, esta tendência que tenho - e outros terão - de olhar para o convés, o imediato convés, em vez de olhar para a proa do barco.

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