Deficiente ou Pessoa com Deficiência


Vejo muitas pessoas preocupadas - interessadas, preocupadas, não sei - com a terminologia, o léxico mais apropriado à designação daquilo que é ter, ou ser, ou mesmo estar com uma deficiência.

Defendi e ainda defendo - não há qualquer problema em mudar de opinião, mesmo que isso implique fazê-lo com a frequência de mudar de camisa -, defendi e ainda defendo, digo, que os termos utilizados no(s) contexto(s) da deficiência são importantes, na medida em que designam um estado, antes mesmo de designarem uma condição ou designarem algo semlhante a um problema, a uma doença, a uma enfermidade (aí está um termo que aprecio particularmente, porque os antigos designavam os problemas psicológicos como "enfermidades da alma", o que, certo modo, está próximo, acho, da verdade).

Aprecio também eu aquela ideia - simplista mas, à falta de melhor, não necessariamente simplória - que, ao ter que me chamarem, me chamem pelo nome, antes de escolherem o que sou por uma simples formulação da minha existência. Lacan explica isto muito bem, aliás, como forma de explicar o nome próprio como ponte entre o significante e o significado.

Mas a terminologia não é tudo. Parece que é tudo, mas não é. Conta - e contará mais, cada vez mais - a intenção posta no que se diz, e a modelação da força posta no que se tenta dizer, mas que, em boa medida, se perde na paixão posta na forma da mensagem. Uma vez descontrolada a forma, perde-se o conteúdo, embrulhado numa espécie de bola de sabão, rebenta, estride, faz vibrar a finíssima camada de sentido que as coisas poderiam ter.

Há uns atrás, repetia-me um professor, em jeito de oração, turma por turma, uma frase de André Malraux, escritor francês pouco apreciado pelas elites intelectuais de esquerda que dominavam o meio académico na altura. Ao mesmo tempo que semeavam os ovos da esquerda-caviar no interior das minis, vomitavam quando ouviam o senhor a dizer, como um aviso: "Le XXI e siècle sera religieux ou ne sera pas".

Hoje, estou convencido que Malraux não poderia estar mais certo. Se não acreditas, não vês. E os intelectuais-caviar da deficiência, agarrados a uma espécie de "força de cartilha", continuam a vomitar quando sentem que a Religião (o termo aplica-se ao divino, ao ético, e não necessariamente ao religioso, na medida em que a Religião não é sempre "religiosa") se encosta aos assuntos desta minoria. 

Não é preciso agradar à fé, nem desagradar ao sagrado. Não é preciso nada. Não é sequer preciso haver comparações. Não é preciso sequer instigar a uma cultura da raiva, porque a raiva é para os cães. É preciso, sim, desvincular a deficiência de um léxico muito próprio que a politiza (no sentido de que a partidariza, que a "parte") e a transforma num coro a uma só voz. É preciso paixão, mas não é preciso destilar ódio. 

Afinal, segundo consta, revisitada assim como que não quer a coisa a tradição judaico-cristã, parece que houve gente que morreu por uma questão de paixão, fosse na cruz ou noutro lado, trespassadas por pregos ou atravessadas por lanças. Era religião? Não sei. Era paixão. Era dogma? Eu, dogmático, me confesso.

(imagem: ©Daniel Garcia, "Liberdade")

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