Heidi e o Utilitarismo

É sabido que o apreço pelas pessoas com deficiência, do ponto de vista político, é geralmente fraco. Em alguns casos, como no caso português, fraquíssimo. Vive-se à espera que as leis se cumpram, imersos que estamos na ideia de que um dia, um governo, levantado do chão, se lembre de as aplicar. Espera-se a vinda do Messias mas o Messias não vem e, acaso não venha antes de morrermos, morreremos e, mortos, não precisaremos do Messias. Tudo está bem. Vai indo, obrigado.
Por uma questão de (en)formação académica, não gosto nem de escrever nem de falar sobre Filosofia. A Filosofia, acho, é como a Poesia que, como terá dito Novalis, é o real absoluto, e havendo já um real absoluto, não precisamos de procurar outro. Ir à Filosofia é um pouco como ir à pesca: é um desporto sangrento, ocasionalmente grave para a presa, mas nunca uma atitude santa para quem o pratica. O peixe morre asfixiado, o anzol pode ficar dentro do bucho, poderá jorrar algum sangue ou até mesmo cuspir a tripa antes de perecer ou, para o ajudar a morrer mais depressa, usar o pau de virar tripas, indispensável ao pescador experiente. Filosofar ou pescar serão, mais coisa menos coisa, como fumar. Fuma-se porque sim. Não há uma explicação concreta para o acto de fumar. É do gosto, e mesmo que o gosto seja do foro da discussão porque o gosto, enfim, discute-se, não se convencem as pessoas a deixar de fumar. Para-se de fumar e pronto, com as razões que temos e que nunca diremos a ninguém por serem um segredo que nem nós próprios tentamos sequer desencriptar (no sentido de arrancar da cripta, de exumar e, consequentemente, acordar o monstro). Eu próprio: deixei de fumar e recomecei a fazer aquele desporto por ter pensado muito e durante muito tempo na razão de ter arrumado as botas. Assim a Filosofia: levar alguém para o quarto escuro só tem uma razão verdadeiramente urgente, e que só é sexual. Afilosófica, portanto, embora nem sempre a Filosofia seja assexuada. Não sendo assim, chamemos-he sadismo. Dor para dar. 
Com a pandemia (haja ou não vírus, haja ou não uma conspiração do medo), e com, por exemplo, o desrespeito assumido por uma lei - a lei do atendimento prioritário, vista por muitos como uma oportunidade de expiação dos pecados cometidos contra as pessoas com deficiência -, podemos pensar que as coisas nos vão correr pior daqui para a frente, na medida em que não estamos posicionados na linha da frente da corrida pela sobrevivência, porque a sobrevivência não é, como gostam de dizer, paralímpica. Não é nada de especial, vá.
Mesmo assim, contrariando a posição daqueles que acham que de nada vale pensar e que alcançaremos a imortalidade pela práctica do bem comum, tenho uma novidade: a práctica do bem comum é, antes de tudo o mais, a satisfação perante nós próprios de qualquer coisa que não saberemos, de imediato, o que é. Ser egoísta basta-te, mas não terás que o parecer porque te fica mal. Um exemplo, para lá do exemplo de Cottingham: quando ofereço algo a alguém, faço-o para me sentir bem, antes de toda e qualquer outra satisfação que o outro possa obter do que fiz. Será assim como libertar a hormona do prazer saciando a fome do outro, mesmo que o outro tenha acabado de comer. Bullshit, em bom português.
Nestes tempo estranhos, quase surreais, em que sinto que uma força autónoma nos obriga a fazer uma espécie rara de silêncio perante o porvir de uma tempestade, o utilitarismo cai, no que lhe faltava morrer, por terra. O bem comum não existe; existe, sim, o bem local, regional, o bem da aldeia, do avô da Heidi que a queria comer e da Heidi que queria comer o Pedro, o bem à medida das nossas necessidades de autosatifação, de autopreservação, até. Somos bons até podermos voltar a ser maus, respostos que estejam os nossos níveis de endorfina. A Ética, do ponto de vista filosófico, continua a existir, mas desprovida de moralidade, o que é bom (dá-nos autonomia para abrir guerra, enquanto minoria, a quem puser a sua necessidade de autopreservação acima dos nossos direitos) e mau (na medida em que estamos entregues a nós próprios, presos que estamos à liberdade de Dostoiévski, Heidegger ou Sartre).
Resta-nos o conhecimento de que a pouca serotonina que serpenteia ainda pelo nosso espaço intersináptico passa também para as veias de quem, no limite, fingimos amar. E finge-se bem, graças a Deus. Não os amamos porque, acima de tudo, nos amamos a nós próprios, por pouca que seja a nossa autoestima, por pouco que a nossa sobrevivência pareça estar fechada em si mesma. Sem querermos, Ao fazer bem tocamos o outro, fazendo involuntariamente melhor. Salva-se o morto de morrer quando procuramos morrer depois do falecido. Saber isto (julgar saber isto) pode ser a forma de encontrar de encontrar uma chave que abra a porta do gabinete de gestão de crises. E perceber quem já entrou. Quem nos espera.

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Whataboutism(s)

Catarina

Era uma vez (e foi só uma vez)